As 9 maiores músicas da Tropicália

Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Doutora em Estudos da Cultura
Tempo de leitura: 12 min.

O Tropicalismo foi um movimento musical que provocou uma verdadeira revolução na cultura brasileira. De fato os jovens músicos conseguiram ter um alcance enorme e influenciar não só aquela geração como também uma série de gerações futuras.

Com as primeiras manifestações da Tropicália em 1967, o movimento tomou verdadeiramente proporções consolidadas em 1968. As criações, corajosas, foram compostas durante o período histórico marcado pela ditadura militar (1964-1985).

Os principais nomes dessa geração inspiradora foram Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes e Gal Costa. Relembre agora as canções que marcaram época.

1. Alegria, Alegria (Caetano Veloso)

Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot

Alegria, Alegria também conhecida pelo grande público como Sem lenço e sem documento foi apresentada no terceiro Festival de MPB da TV Record (em 1967) e se consagrou como uma das maiores canções da Tropicália.

Caetano Veloso foi um dos líderes do grupo e se apresentou com um conjunto argentino de rock que usava guitarras elétricas. O alvoroço se instaurou porque os instrumentos elétricos não eram bem recebidos nos festivais.

Já a partir do trecho acima podemos perceber como a composição pretendia ser uma espécie de manifesto, criticando inclusive abertamente os intelectuais de esquerda. Ao longo da letra Caetano trata dos novos rumos estéticos do Brasil.

Trata-se de uma canção fácil, atual e cheia de atitude que se tornou uma verdadeira ilustração do seu tempo.

2. Aquele abraço (Gilberto Gil)

O Rio de Janeiro continua lindo
O Rio de Janeiro continua sendo
O Rio de Janeiro, Fevereiro e Março

Alô, alô, Realengo
Aquele Abraço!
Alô torcida do Flamengo
Aquele abraço

Chacrinha continua
Balançando a pança
E buzinando a moça
E comandando a massa
E continua dando
As ordens no terreiro

Uma declaração de amor ao Rio de Janeiro feita por um baiano, assim poderia ser resumida a letra de Aquele abraço.

Na passagem acima, que compõe apenas o trecho inicial da música, vemos uma série de referências culturais ligadas à cidade que foi o berço da cena musical brasileira durante algumas décadas.

A música cita elementos da cultura de massa como por exemplo o bairro característico do subúrbio (Realengo), o programa de tv (o Chacrinha) e o mais popular time de futebol carioca (o Flamengo). Aquele abraço carrega um olhar solar, otimista, e funciona como um registro do seu tempo.

3. Panis et circenses (Caetano Veloso e Gilberto Gil cantada por Os Mutantes)

Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer

Mandei fazer
De puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer

A música composta em parceria entre Gilberto Gil e Caetano Veloso ganhou o mundo na voz do conjunto Os Mutantes, banda formada por Sérgio Dias, Arnaldo Baptista e Rita Lee.

O que vemos acima é um trecho da composição que foi gravada em 1968, no álbum Tropicália ou Panis Et Circenses.

O título da canção é profundamente engajado e faz referência à política do pão e circo (instaurada durante o império romano). Na época se usava a comida e o entretenimento para distrair a população enquanto os políticos faziam o que desejavam.

A crítica aqui aparece personificada nas pessoas da sala de jantar, uma elite fútil e completamente alheia - mesmo alienada - diante do cenário político brasileiro de repressão.

4. Geleia geral (Torquato Neto e Gilberto Gil)

Um poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplendente, cadente, fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geleia geral brasileira
Que o jornal do Brasil anuncia

Ê bumba iê iê boi
Ano que vem, mês que foi
Ê bumba iê iê iê
É a mesma dança, meu boi

A expressão Geleia Geral teve origem em um verso de Décio Pignatari e se tornou uma canção-manifesto de Torquato Neto e Gilberto Gil.

A música é bastante representativa do movimento ao misturar ritmos - rock e baião - e também uma série de referências culturais - como o poema Canção do Exílio e o Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade.

Os versos acima são apenas um breve trecho da canção que é um hino emblemático do movimento Tropicalista. Trata-se aqui de um elogio à nossa cultura híbrida, múltipla, rica, e ao mesmo tempo um manifesto em relação ao tempo repressor em que se vivia - tudo isso exposto em uma letra engajada, provocadora.

5. Lindonéia (Caetano Veloso e Gilberto Gil)

Na frente do espelho
Sem que ninguém a visse
Miss
Linda feia
Lindonéia desaparecida

Despedaçados atropelados
Cachorros mortos nas ruas
Policiais vigiando
O sol batendo nas frutas
Sangrando
Ai meu amor
A solidão vai me matar de dor

Cantada por Nara Leão, Lindonéia foi composta por Caetano e Gilberto Gil e surgiu a partir de uma notícia de jornal que narrava o desaparecimento de uma Lindonéia no subúrbio.

Rubens Gerchman após ler a notícia compôs a tela A bela Lindonéia (1966) e Nara pediu para Caetano que transformasse a história em música.

Quadro A bela Lindonéia de Rubens Guerchman que inspirou a canção
Quadro A bela Lindonéia de Rubens Guerchman que inspirou a canção.

É curioso como Nara Leão não figura na fotografia da capa do álbum, assim como a sua personagem desaparecida.

A música carrega um jogo entre o espaço privado e o espaço público representado, por exemplo, pela intimidade do espelho da casa e pelo medo de estar na rua com policiais vigiando.

6. Miserere nobis (Gilberto Gil)

Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão

Já não somos como na chegada
Calados e magros, esperando o jantar
Na borda do prato se limita a janta
As espinhas do peixe de volta pro mar

O título da canção - Miserere nobis - é uma expressão latina que aparece nas missas católicas. Convém lembrar que os compositores da Tropicália foram criados no nordeste e sofriam, ainda que indiretamente, com uma influência religiosa. A geração de Gil e Caetano foi ambientada a partir de uma matriz cristã e essa interferência transpareceu na poética do grupo.

A música abre com um tom solene, similar ao que se encontra nos cultos religiosos, e a letra faz um jogo com o sangue de cristo e o vinho. Na composição de Gilberto Gil a comida tem papel político, ressaltando também o caráter questionador e engajado dessa geração.

7. Parque industrial (Tom Zé)

É somente requentar
E usar,
É somente requentar
E usar,
Porque é made, made, made, made in Brazil.
Porque é made, made, made, made in Brazil.

Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação.
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção.

Tem garota-propaganda
Aeromoça e ternura no cartaz,
Basta olhar na parede,
Minha alegria
Num instante se refaz

Parque industrial é um registro do seu tempo e enfatiza o jogo das relações de poder entre os países. Fala-se aqui da importação e da exportação não só de bens de consumo como também de valores e cultura.

Tom Zé ressalta a relação antropofágica do Brasil como um traço constitutivo da nossa cultura e também sublinha a mistura de tempos (a dimensão do arcaico que se reveza com o moderno em um país que vivia sob a égide da ditatura). Convém lembrar que o Brasil daquela época ainda era metade rural e metade urbano, um verdadeiro espaço híbrido.

A letra do compositor baiano faz também um comentário ácido sobre o que não deu certo nosso processo de industrialização e critica uma série de escolhas políticas de quem comandava o país.

8. Enquanto seu lobo não vem (Caetano Veloso )

Vamos passear na floresta escondida, meu amor
Vamos passear na avenida
Vamos passear nas veredas, no alto meu amor
Há uma cordilheira sob o asfalto

A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas
(Os clarins da banda militar)
Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas
(Os clarins da banda militar)
Presidente Vargas, Presidente Vargas, Presidente Vargas
(Os clarins da banda militar)

Enquanto seu lobo não vem é uma canção profundamente política, os arranjos demonstram o clima de opressão que vinha tomando conta do Brasil durante a ditadura militar. A música é contemporânea das manifestações e passeadas antirregime. Apesar da luta, o tom sombrio se instaura (a melodia começa com um suposto ar leve, de otimismo, e vai ganhando peso).

A composição é uma espécie de prenúncio uma vez que meses depois o lobo (metaforicamente a ditadura) vem e leva embora Caetano e Gil, os dois maiores nomes da Tropicália, para o exílio.

O resultado da música é uma incitação ao protesto e à guerrilha. Ela relata um acirramento da posição dos tropicalistas contra os anos de chumbo.

9. Mamãe, Coragem (Caetano Veloso e Torquato Neto)

Mamãe, mamãe, não chore
A vida é assim mesmo
Eu fui embora
Mamãe, mamãe, não chore
Eu nunca mais vou voltar por aí
Mamãe, mamãe, não chore
A vida é assim mesmo
Eu quero mesmo é isto aqui

Mamãe, mamãe, não chore
Pegue uns panos pra lavar
Leia um romance
Veja as contas do mercado

Apesar da criação ser de Caetano com Torquato, Mamãe, Coragem ficou eternizada na voz da Gal Costa. O título, por sua vez, foi retirado de uma peça de Brecht que serviu de inspiração para os baianos.

Numa leitura mais superficial podemos dizer que a canção trata de uma mãe preocupada com a vida do filho na cidade grande. Muita gente, porém, faz uma leitura biográfica da canção, como se esse fosse um diálogo possível entre Torquato e a sua mãe Salomé. Vale lembrar que o músico morreu de maneira trágica tendo se suicidado aos apenas 28 anos.

Mamãe, Coragem é um retrato duro, cruel e real de uma relação de mãe e filho daquela geração.

Saiba mais sobre a Tropicália

Os principais nomes da Tropicália no âmbito da música foram: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes, Gal Costa, Torquato Neto, Guilherme Araujo e Tom Zé.

Mas o movimento tropicalista acabou por reverberar em diferentes áreas artísticas (não só na música como também no teatro, nas artes plásticas, na poesia, no cinema).

Independente do meio, os artistas pretendiam tecer uma análise crítica da cultura brasileira provocando uma reflexão aprofundada e demonstrando uma verdadeira aversão ao lugar comum embotado.

O nome do grupo foi consagrado em 1968, quando Nelson Motta redigiu e publicou um manifesto jornal Última Hora do Rio de Janeiro chamado Cruzada Tropicalista.

Os jovens que fizeram o tropicalismo
Os jovens que fizeram a Tropicália

Havia um desejo comum entre os artistas de contestar, experimentar, provocar uma inovação estética.

A vontade de promover um canibalismo cultural se traduziu, por exemplo, no uso de combinações improváveis na música - os compositores misturaram rock, bolero, bossa nova, samba. Não só promoveram uma mistura de ritmos como também usaram instrumentos impensados que mesclavam o erudito com o popular.

Essa ebulição cultural era transmitida ao vivo, através dos Festivais da Canção exibidos pela tv.

Quando a repressão apertou, com a implementação do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, Caetano Veloso e Gilberto Gil, nomes chave do movimento, foram presos. Mais tarde acabaram por ser exilados na Inglaterra

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Rebeca Fuks
Rebeca Fuks
Formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), mestre em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013) e doutora em Estudos de Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2018).