Cântico Negro de José Régio: análise e significado do poema

Carolina Marcello
Revisão por Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Tempo de leitura: 10 min.

Cântico Negro é um poema de José Régio, pseudônimo de José Maria dos Reis Pereira. Foi publicado em 1926 no seu primeiro livro, chamado Poemas de Deus e do Diabo.

O "poema-manifesto" contém algumas premissas modernistas que ditaram a obra poética de José Régio e da geração presencista.

Cântico Negro

Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

Análise

Cântico Negro é considerado um poema-manifesto, pois dentro dele há elementos comuns da poética de José Régio. O seu primeiro livro de poemas, onde se encontra esta poesia, tem como tema central a religiosidade, Deus e o Diabo.

Essa temática será recorrente na obra de José Régio, sendo um dos pilares de suas reflexões metafísicas. A religiosidade em Régio se aproxima um pouco do simbolismo, ao mesmo tempo que faz uma eterna passagem em círculos entre o grotesco e o sublime, como em Baudelaire.

No poema em questão, Deus e o Diabo, o grotesco e o sublime estão em eterno movimento. A união das duas figuras é marcante, como nos versos:

Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Apesar de só aparecer formalmente na penúltima estrofe, essas figuras estão presentes em todo o poema. O indivíduo poético, que é fruto dessa relação, se apresenta logo na primeira estrofe. É por meio dele que elas agem ao longo do poema.

A atitude do sujeito é uma espécie de reflexo das relações entre Deus e o Diabo. Sua gênese única possibilita ações que fogem à regra. Assim o sujeito se torna individualizado e, ao mesmo tempo, fragmentado. Sua individualidade reside nas suas escolhas: não seguir o caminho de todos, procurar um caminho diferente, mesmo que seja mais difícil e obscuro.

O indivíduo é extremamente importante para a poesia de José Régio. É por meio dele que Deus se manifesta e através de Deus que ele se anula. Também é graças ao indivíduo que a própria poesia existe, tanto na realidade como na metafísica.

Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

Aqui o indivíduo aparece em contraposição com "os outros", e a individualidade é afirmada de modo incisivo com a negação do caminho sugerido pelos outros. O olhar é essencial para a compreensão da atitude do "eu", olhos cansados e irônicos indicam a atitude em relação às outras pessoas.

A ironia, para além de um estado do "eu", é também uma forma de linguagem presente no poema. A própria estrofe é recheada de ironia, a negação do indivíduo em acompanhar os outros é colocada de forma irônica, com os versos "e cruzo os braços, e nunca vou por ali...".

A figura do grotesco também está presente em todo o poema. São imagens que remetem a coisas baixas, o caminho escolhido pelo "eu" é cheio delas.

E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Essas figuras aparecem em contraposição com o desejo dos outros. Enquanto eles desejam o fácil e o alto, o indivíduo busca o baixo e o difícil. É como se os outros fossem em busca do sublime e o "eu" buscasse o grotesco. O jogo entre luzes e sombras está feito e acompanha o contraste entre Deus e o Diabo.

Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

A individualidade do sujeito é marcada sempre pela oposição com os outros e seus desejos. Mesmo não tendo em si um desejo claro, o "eu" se afirma ao negar o que advém de fora. O estado do indivíduo é quase "natural", como "uma onde que se alevantou".

Significado

Temos neste poema dois temas muito caros à poesia de José Régio: individualidade e religiosidade. A importância do indivíduo está presente em todo o poema. Ao longo do versos, o poeta vai afirmando essa necessidade de ser único, contrariando a vontade e os desígnios dos outros.

Tomar o seu próprio caminho, em vez de seguir, é o único modo de viver aceito por José Régio, mesmo que o conduza a lugares desagradáveis como lamaçais. A força do indivíduo reside nessa negação do meio corrente e da afirmação de uma identidade própria.

Seu caminho é o caminho dos loucos, dos poetas com o cântico entre a boca. A religiosidade entra na poesia com as figuras de Deus e o Diabo. Ela também é um motivo para que o "eu" seja assim. É por meio dessa dialética que o sujeito se relaciona com o mundo, seu espaço é definido por Deus e o Diabo. Sua individualidade advém de sua relação com o sagrado e, mesmo assim, o indivíduo é definido pela ciência ("É um átomo a mais que se animou...").

A poesia de José Régio é cheia de ondulações que partem do indivíduo, são como as ondas formadas por uma pedra jogada na água. Nessa metáfora Deus e o Diabo são os lançadores da pedra "eu" que causa a ondulação na superfície, que se repete e se propaga partindo do centro.

José Régio e a revista Presença

Presença foi uma revista moderna, focada em literatura e publicada em Coimbra entre 1927 e 1940. Régio foi um dos fundadores e principais colaboradores dessa revista, que junto com Orfeu foram os grandes pilares da literatura modernista em Portugal.

A revista Presença não se dedicava apenas à publicação de textos literários, mas também de crítica. José Régio escreveu diversos artigos para essa revista, dentre eles dois artigos chamados Literatura Viva e Literatura livresca e Literatura viva. Estes dois artigos são manifestos literários onde o autor expõe as suas convicções estéticas.

Uma das ideias mais importantes de Régio que se encontra nestes artigos é o conceito de classicismo moderno. Para o escritor toda obra clássica é moderna, no sentido de captar uma imanência das coisas. As grandes obras, desde Homero até a modernidade, seriam modernas, pois existe nelas um individualismo, sobrepondo-as aos diversos rótulos literários.

O individualismo na criação literária é um elemento essencial na obra de José Régio, que por meio destes artigos e outros ensaios tentou teorizar de uma forma prática. Para ele, o modernismo se encontra na obra por meio do individualismo na criação e o classicismo como forma, como arquitetura da obra. A pesquisa e os ensaios de José Régio se refletem na sua obra, já que o autor procura exercer o que propõem, através de seus poemas.

Cântico Negro e Maria Bethânia

O poema de José Régio ganhou popularidade no Brasil pela voz da artista Maria Bethânia, que o declamava em algumas apresentações. Foi gravado no álbum ao vivo Nossos Momentos, de 1982, e precedia a música Estranha forma de Vida, um fado de Amália Rodrigues e de A.Duarte Marceneiro.

Em 2013, o poema foi gravado novamente no DVD do show Carta de Amor seguido pela música de Caetano Veloso Não enche o saco. O concerto de Bethânia foi feito após a polêmica da cantora com a Lei Rouanet, e a leitura do poema seguido da música foi interpretado por muitos como um desabafo.

Conheça também

Carolina Marcello
Revisão por Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes e licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apaixonada por leitura e escrita, produz conteúdos on-line desde 2017, sobre literatura, cultura e outros campos do saber.